Esta é sobre como os ex-atletas do Fluminense convenceram o Flamengo a criar um departamento de futebol e como o clube começou a ficar tão popular.
Saída honrosa. Ainda
faltava uma partida para o campeonato de 1911 acabar e o compromisso do Fluminense
seria contra o América. Paranhos, o zagueiro que serviu de pivô para a crise,
ao ser escalado no lugar de Borgerth, pediu aos dissidentes que participassem
do confronto. Com o idealismo dos atletas amadores, todos concordaram em honrar
a camisa tricolor pela última vez e cumprir com mais esta missão. Menos
Borgert, que estava afastado pela diretoria.
O América, que terminou o certame como
vice-campeão, tinha em seus quadros atletas com a grandeza de Marcos Carneiro
de Mendonça, que viria a se transferir para o Flu e acabaria sendo o primeiro
goleiro da Seleção Brasileira, e o ótimo Belfort Duarte, até hoje venerado como
símbolo de nobreza e lealdade em campo. Era um adversário complicado. A partida
foi no dia 1º. de outubro, todos se dedicaram ao máximo e o Fluminense venceu
por 2 a 0, com gols de Gallo e Paranhos.
O time das Laranjeiras foi campeão invicto,
vencendo todas as seis partidas que disputou, já que o Carioca foi disputado por apenas
quatro equipes, em dois turnos e pontos corridos. Foram 21 gols a favor e
apenas um contra.
No dia 3 de outubro, Borgerth e seus
companheiros entregaram ao Fluminense um ofício pedindo o desligamento do
clube. Na reunião de diretoria, não houve consenso. O presidente Atahualpa
Guimarães chegou a ficar indeciso na hora de dar o voto de minerva, até que
Affonso Castro convenceu o mandatário tricolor de que “a saída destes atletas
vai estabelecer, de modo definitivo, o princípio de autoridade em nossa
agremiação”.
Era o que faltava para que os nove rapazes
seguissem seu novo caminho. Dos titulares, ficaram no Flu apenas James Calvert
e Oswaldo Gomes, que viria a se consagrar, em 1914, como o autor do primeiro
gol da história da Seleção Brasileira.
O carismático. A luta
de Alberto Borgerth, aos 19 anos de idade, e seus camaradas ainda não havia
terminado. Teriam que vencer pelo menos mais um round: convencer o Flamengo a
ter um time de futebol. Persuadir os “fortões do remo” não era tarefa fácil,
sem falar que alguns conselheiros acreditavam que tudo não se passava de uma
aventuda e que os rapazes fariam as pazes com o Fluminense e criariam um
problema para o Flamengo. Seria preciso muita lábia. O futebol ainda era alvo
de muita desconfiança, visto como um esporte nada masculino.
Dia
8 de novembro de 1911. Assembleia no Flamengo. Autorizado pelo presidente
Virgílio Leite de Oliveira e Silva, Borgerth tomou a palavra e sugeriu aos
associados a criação de uma seção de futebol no clube. Com seu carisma, o jovem
estudante de medicina desfilava suas razões: era o time campeão da cidade e era
quase certo que a Liga Metropolitana de Sports Atléticos (LMSA) colocaria o Fla
na primeira divisão, mesmo com o regulamento prevendo a segundona para as
equipes estreantes.
Apesar
de sua eloquência e dos argumentos embasados os membros da assembleia não se
convenceram de cara. Incomodava a eles o papo-furado de “futebol ser um esporte
de pulinhos e de bailarinos, além de ter muito contato físico entre homens”.
O
presidente Virgílio Leite se convenceu, mas não poderia impor uma decisão. A
assembleia era soberana, mas, apesar de uma primeira resposta negativa, viu-se
que muitos passaram a considerar a possibilidade do Flamengo ter futebol. Ao
deixar a reunião, o presidente se dirigiu a Borgerth: “Você está fazendo
medicina, mas eu acho que darias um ótimo advogado”.
Com
toda a certeza, o assunto continuou se arrastando em conversas dentro do clube.
De vez em quando, num canto ou outro, havia um burburinho. A ideia ia se
solidificando aos poucos, até que numa reunião extraordinária, na noite de 24
de dezembro, finalmente foi aprovada a criação do de um Departamento de
Esportes Terrestres e a direção foi entregue ao competente Borgerth.
Mas...
Sempre existe o “mas”... O pessoal do futebol tinha que atender a algumas
condições impostas pelos remadores. Em primeiro lugar, deveriam se virar com
recursos financeiros gerados pelo novo departamento. Se a experiência não desse
certo, acabava-se com o futebol. E, finalmente, os jogadores não poderiam usar
a mesma camisa e nem o escudo usado pelo remo. Foi quando criaram a camisa de
quadrados pretos e vermelhos, logo apelidada de papagaio-de-vintém, porque se
parecia com as pipas baratas que os moleques costumavam brincar nas ruas.
Junto e misturado com o povo. Conforme Borgerth havia profetizado, o time foi aceito na primeira
divisão do Campeonato Carioca, inclusive com o voto a favor do Fluminense, que
também se dispôs a ceder o estádio das Laranjeiras para que o Flamengo mandasse
seus jogos, já que o regulamento também exigia que o clube tivesse um estádio.
Tal atitude o deixou emocionado, ao receber a notícia do amigo Oswaldo
Palhares: “Agora sinto ainda mais orgulho de um dia ter defendido as cores do
Fluminense”.
Mas,
onde o time iria treinar, se o clube só tinha a sua garagem de barcos na Praia
do Flamengo? O que parecia um problema, uma desvantagem, com o tempo mostraria
o quanto esta falta de campo seria benéfica e um fator fundamental para o
sucesso e a popularidade do Flamengo.
Próximo
à sede do clube, na Praia do Russel, o prefeito Bento Ribeiro mandou fazer um
campo de futebol gramado e com balizas, para que a garotada da região pudesse
se divertir. Bem, a meninada se divertida, sim, mas só até o final da tarde,
quando apareciam, com chuteiras e roupas de treino, os jogadores do Flamengo, o
mais novo time da primeira divisão carioca. Era hora dos petizes verem seus
ídolos de perto.
O
escritor e economista Marcel Pereira, em seu livro “A Nação”, conseguiu
explicar muito bem como funcionou esta aproximação:
“A
garotada acompanhava o time, apontando o Píndaro, o Baena, o Gallo, o Borgerth,
o Gustavinho. Para Alberto Borgerth, ali estava a explicação de tudo. Assim, a
falta de um campo fez o Flamengo misturar-se ao povo, aproximar-se dele. Os
garotos, em busca de ídolos, iam ao encontro deles no campo do Russel. Podiam
tocá-los, podiam devolver as bolas que iam fora. E haviam de contar em casa, na
escola, que tinham conhecido o Nery, que tinham batido nas costas do Amarante,
que tinham apertado a mão do Baiano.
Para
começar a entender como o Flamengo ganhou tamanha popularidade, deve-se ir
fundo na análise do espírito que permeava o clube. O caso rubro-negro é uma
daquelas excelentes metáforas da eterna batalha entre o velho e o novo, entre o
status quo e o revolucionário. Um
capítulo da história onde se encontram a voluntariedade da juventude e a
inflexibilidade do velho, geralmente carregado em vícios. A inquietação do
jovem choca-se com o medo que o tradicional tem das ideias novas e de suas
possíveis consequências para a sua hegemonia. No Rio de Janeiro, o Fluminense
nasceu como símbolo da aristocracia da República recém-proclamada; o Vasco
representava o colonizador português: opressor, explorador, ditatorial. O
Botafogo não se originou nem da aristocracia e muito menos da elite
colonizadora, jamais ganhou grande popularidade. O espírito Flamengo era
diferente, tinha uma alma vibrante, petulante e juvenil, que logo cativaria
seguidas gerações”.
Nessa
época, o futebol já começava a competir com o Remo pelo interesse da população
e da imprensa. Até porque, para se praticar o remo, era preciso ser sócio de um
clube e isso não era possível para grande parte da população. Já bater uma
pelada, qualquer um podia, desde que se improvisasse dois times, colocasse
pedras no lugar do gol e algo que servisse de bola, geralmente feita de meias.